quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Sobrevivi

Estive na guerra, e queimei meu braço; vi a pele do meu braço direito cair instantaneamente ao passo que ardia o sangue que fervia naquela estrada empoeirada. Como se não bastasse perdi o dedo indicador ao correr pela floresta, arranhões era um fenomeno incontável e indolor. Mas eu sobrevivi. Eu tenho a minha história que vale mais que qualquer título.
Estive num naufrágio. E assim que a balsa foi atingida por uma imprevista tempestade caí no mar mais agitado da minha vida. E fui bem fundo. A ponto de não sentir em mim a vida. De sentir uma imprescindível pressão. Meus ouvidos já não eram ouvidos, eram bombas relógios mas eu ouvia. Ouvia a beira se aproximando e o meu nariz implorava ar. Meu nariz correu por todo o meu corpo, só ele tinha o objetivo de chegar ao mundo de volta, e ele chegou e respirou, respirou. Eu não pensava, eu respirava. Eu me vi de fora de tudo. E eu sobrevivi.
Estive num desastre residencial. O prédio onde morei durante 15 anos, tinha rachaduras e eu decidido derrubei comigo dentro. Fiquei soterrado e tudo o que eu via ao meu redor eram restos de lembranças de uma vida inteira. Eu vi a foto da minha, um formatura meio amassado, outro meio intacto. Eu senti saudade de mim. Eu decidi não voltar pra mim. E ir em busca do eu mais inteiro a quem pertenço. Fui tirando as pedras mais difíceis, aquelas que eu imaginava e não acreditava ser capaz de tirar. Tirei. E finalmente sobrevivi.
Eu contei pra meus pais que sou gay. Precisei tirar sentimento por sentimento. Lembrança por lembrança. Como se eu tivesse que me esquivar de um bombardeio, como se eu tivesse que esvaziar o mar: balde por balde. Como se eu tivesse que sair do meio dos escombros, tirando pedra por pedra. E assim fiz. Horas não tinha recordação, horas tinha a pele do meu coração rasgando, horas eu não me tinha. Tinha apenas a fotografia da minha vida de reservas meio amassada. Mas eu sobrevivi.

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